Antes de mais nada, é necessário reforçar que o filme Tangerine (2015) não foi o primeiro, nem é o único e exclusivo a ser filmado inteiramente com celulares, em vez de câmeras cinematográficas – seja em 16 mm ou 35 mm.
O diretor e roteirista do filme, Sean Baker, que já vinha se destacando no cinema independente, dentro do circuito de arte e filmes cult, neste ano entrou para o mainstream graças ao seu trabalho mais recente, Anora (2024), que no ano ado levou a Palma de Ouro em Cannes e, neste ano, fez uma varredura no Oscar, com cinco estatuetas – sendo que o diretor levou quatro: direção, edição, fotografia e produção. Sean praticamente faz tudo em seus filmes.
O filme Tangerine faz parte de um estilo denominado microcinema, um movimento independente de produção cinematográfica que utiliza recursos limitados, geralmente gravando com celulares. Isso, longe de ser uma limitação, permite que o diretor conduza todas as etapas da produção – desde a filmagem e fotografia (manipulando ele mesmo o celular) até a edição. Ao utilizar uma tecnologia de baixo custo, a produção se torna ível, destacando a criatividade na execução.
O filme de Sean Baker é uma pequena obra-prima do cinema e, talvez, um dos melhores ao abordar um tema atual e polêmico: o universo trans, confrontado com a hipocrisia familiar, em um cenário urbano caótico e solitário – no caso, as ruas de um bairro decadente na Califórnia. Apesar disso, o longa soa ao mesmo tempo transgressor e comum. Essa dualidade, presente no cerne da trama que se desenrola ao longo de um único dia, é explorada com talento pelo diretor, que também assina o roteiro e a edição. A abordagem é dinâmica, com cortes rápidos e planos-sequência de tirar o fôlego, aliados a uma fotografia exuberante.
O tratamento cromático da paleta de cores é cuidadosamente construído ao longo das ações dos personagens. O filme foi inteiramente realizado com o uso de três iPhones 5S, equipados com adaptadores anamórficos da Moondog Labs – que permitem a captura no formato widescreen, ideal para exibição em cinemas – e com a Steadicam Smoothee da Tiffen, equipamento que estabiliza a imagem e possibilita acompanhar cenas em movimento sem tremores, recurso essencial para as tomadas nas ruas com os personagens em deslocamento.
O cuidado técnico na narrativa é notável desde os primeiros 30 minutos, com a fotografia dominada por tons de amarelo e laranja para capturar o fim de tarde californiano. As locações incluem cenários urbanos reais, como clubes em West Hollywood e a Santa Monica Boulevard. Mesmo nas cenas noturnas, a naturalidade da iluminação e a vibração das cores se mantêm, reforçando a autenticidade e a potência visual do longa.
Durante as gravações com o celular, as imagens são tratadas por meio de um aplicativo específico para iPhone, o FiLMiC Pro – que permite controlar foco, abertura, temperatura de cor e gravar os videoclipes (as cenas) com taxas de bits mais altas, oferecendo uma qualidade de vídeo superior à das configurações automáticas do aparelho.
Ou seja, não se trata apenas de pegar um celular, seguir um roteiro e sair gravando um filme sem qualquer cuidado técnico. Para que uma produção de pequeno porte chegue às telas do cinema, é necessário um apuro técnico – mais barato, sim, mas não menos trabalhoso. São indispensáveis cuidados com a iluminação, a fotografia, o tempo de exposição em planos-sequência, além de um bom conhecimento sobre o tipo de aparelho mais adequado para atender às exigências de enquadramento, tratamento de cor e uso de profundidade de campo.
Para se ter uma ideia dos custos, com um orçamento de aproximadamente 100 mil dólares (usando a cotação de 2014, ano da produção), Sean Baker precisou reduzir drasticamente as despesas: adquiriu três iPhones (cerca de US$ 500 cada), o aplicativo de edição por US$ 10 e um estabilizador por US$ 150. O restante do valor foi destinado ao pagamento de cachês simbólicos, aluguel de locações e à pós-produção. No total, o filme arrecadou cerca de 1 milhão de dólares em bilheteria, um retorno impressionante para uma produção independente.
Mas o que torna “Tangerine” tão especial?
O filme retrata algumas horas de uma trama inesperada que se a na véspera do Natal. Sin-Dee (interpretada pela excelente Kitana Kiki Rodriguez), uma transexual prostituta recém-saída da prisão, descobre por meio de sua melhor amiga – a também trans Alexandra (Mya Taylor) – que seu namorado e ex-cafetão, Chester (James Ransone), está traindo-a com uma mulher cisgênero. Enfurecida pelo ciúme, Sin-Dee sai pelas ruas do bairro onde se prostitui à procura da suposta amante, chamada Dinah (Mickey O’Hagan).
Ao longo dessa busca, o espectador é apresentado a diversas figuras que compõem o submundo dos "quintais" da Califórnia. Algumas sequências protagonizadas por Sin-Dee e Alexandra funcionam como pequenas crônicas do cotidiano de um microuniverso marginal, revelando com sensibilidade e ironia as tensões, afetos e contradições desses personagens invisibilizados.
Um dos destaques no início do filme é saber que Kitana Kiki Rodriguez e Mya Taylor não são atrizes profissionais. Ainda assim, aceitaram participar da produção e, com a direção cuidadosa de Sean Baker, entregaram atuações espontâneas e naturais, perfeitamente compatíveis com a proposta da história.
Durante a busca de Sin-Dee, conhecemos também Razmik (Karren Karagulian), um taxista armênio, homem de família, que circula frequentemente pela região e é bastante conhecido pelas prostitutas. Sua história é envolvente, inesperada e profundamente reveladora no que diz respeito à hipocrisia das estruturas familiares tradicionais.
No terço final do filme, temos um desfecho surpreendente: um encontro grupal em uma lanchonete, onde verdades vêm à tona e os retratos desse ambiente transgressor – revelados ao longo do filme como pequenas pílulas do cotidiano – se entrelaçam. A conclusão pode não soar completamente satisfatória sob a ótica convencional, mas é totalmente coerente com a natureza e a trajetória dos personagens envolvidos.
Assista. Será uma grande surpresa. O filme está disponível no serviço de streaming Filmicca, uma plataforma de curadoria de filmes de arte e produções independentes, que pode ser baixada na Play Store.
Outros filmes feitos com celular
O movimento do microfilme, além de reduzir custos na produção cinematográfica – algo notoriamente caro –, também vem sendo utilizado por cineastas consagrados como uma escolha estética, explorando o formato como recurso visual para conferir mais urgência e realismo às obras.
Um exemplo notável é o diretor sul-coreano Park Chan-wook (do clássico Oldboy), que gravou, em 2011, o curta-metragem Paranmanjang inteiramente com um iPhone 4. No mesmo ano, foi lançado Olive, considerado o primeiro longa-metragem feito inteiramente com um smartphone – neste caso, um Nokia N8, adaptado com uma lente externa.
Outro nome de peso é Robert Rodriguez, diretor de filmes como Sin City e Era uma vez no México. Em 2013, ele foi contratado pela então gigante BlackBerry para dirigir um curta-metragem usando exclusivamente seu smartphone. O resultado foi Two Scoops, uma produção em que duas irmãs enfrentam alienígenas.
Plataformas como o Vimeo disponibilizam curtas e médias-metragens de cineastas iniciantes – muitos deles filmados com celulares. É desse material que surgem ideias para longas-metragens e também novos nomes promissores para o cinema, como aconteceu com Sean Baker.