Uma breve lembrança dos tempos em que eu trabalhava como editor-chefe do Caderno de Variedades do histórico jornal Alto Madeira, nos anos 90, quando escrevi um artigo sobre os melhores discos brasileiros que eu havia ouvido até então. Ainda estava incendiado pela fase roqueira da explosão do rock nacional dos anos 80, especialmente por causa de grupos como Titãs (Cabeça Dinossauro ainda é, para mim, uma obra-prima), Legião Urbana (acho o primeiro disco deles brilhante) e Paralamas do Sucesso (principalmente por Selvagem!). Mas também havia aqueles queridinhos que descobri no final da adolescência, fuçando em sebos de discos — e um deles sempre ocupava o primeiro lugar: Fruto Proibido, de Rita Lee & Tutti Frutti. Um disco maravilhoso de 1975, que completou 50 anos de lançamento.
Assistindo ao documentário disponível na plataforma de streaming MAX, Rita Lee: Mania de Você, produzido e dirigido por Guido Goldberg, fui às lágrimas. Não se trata de uma biografia linear da artista — considerada a Rainha do Rock Brasileiro —, mas sim de um memorial afetivo da Rita mãe, cantora, compositora e, acima de tudo, mulher. No mês em que se completam dois anos desde sua partida, em decorrência de um câncer, assistir a esse documentário — recheado de cenas de arquivo com apresentações antológicas e depoimentos de músicos que a acompanharam — é como folhear um precioso álbum de memórias. Trata-se de um documento audiovisual denso e sensível sobre sua carreira solo.
Em nenhum momento o documentário menciona que Rita Lee já havia feito história na música brasileira com a banda Os Mutantes, nem seu conturbado relacionamento com o guitarrista e também integrante do grupo, Arnaldo Baptista.
Desde o início, o foco é a Rita Lee solo, a partir do disco que foi um divisor de águas em sua trajetória: Fruto Proibido. Mostra a formação da banda Tutti Frutti e sua dispensa pela gravadora Polydor — não mencionada no filme, mas menciono aqui —, que a advertiu, em 1974, quando ela já estava no circuito de shows lendários, com performances ousadas e figurinos marcantes, muitas vezes masculinizados. A gravadora exigia que ela fosse mais "feminina" no palco. Felizmente, Rita ignorou essa imposição e fez história do seu jeito — autêntico, irreverente e absolutamente genial.
Naquela época, Rita já contava com um séquito fiel de fãs gays — e não se importava se seu figurino era considerado masculinizado, nem se agradava ou não à gravadora ou aos padrões conservadores impostos pela censura da ditadura militar. Para ela, o mais importante sempre foi a música e o respeito pelo público que a acompanhava. Assim, desligou-se da Polydor e, pouco tempo depois, assinou com a Som Livre, que lhe impôs apenas uma condição: que tivesse uma banda de apoio estável — e assim consolidou-se o Tutti Frutti.
A partir desse contexto, o documentário também aborda a infância repressora de Rita, marcada por conflitos familiares, sobretudo com o pai, que não aceitava o comportamento rebelde da filha. Quando os músicos Luiz Carlini (guitarrista do Tutti Frutti) e Lee Marcucci (baixista) relembram o clássico “Ovelha Negra”, revelam que Rita chegou com a melodia e a letra prontas — uma composição visceral, diretamente inspirada em sua relação com o pai. A letra diz:
Foi quando meu pai me disse
Filha, você é a ovelha negra da família
Agora é hora de você assumir e sumir
Baby, baby
Não adianta chamar
Quando alguém está perdido
Procurando se encontrar
Gilberto Gil também aparece no documentário, comentando sobre a importância dessa canção na carreira de Rita e destacando seu peso simbólico como um dos maiores clássicos da música brasileira.
Lembro que acabei com o meu disco de vinil de tanto ouvir essa faixa. Ver imagens de arquivo em que Rita canta para plateias completamente hipnotizadas por seus versos e por sua interpretação visceral é algo que inevitavelmente desperta um sentimento profundo de nostalgia e emoção.
É esse o tom certeiro que guia os 90 minutos do documentário: enxuto, direto, e ao mesmo tempo intimista. Um retrato da vida artística e pessoal de Rita Lee, centrado nas pessoas que foram, de fato, as mais importantes para ela.
A narrativa acompanha também o início do relacionamento com o músico Roberto de Carvalho — seu grande parceiro na vida e na música — com quem teve três filhos: Beto, Antônio e João Lee. A partir dessa união, vieram momentos de profunda inspiração, paixão e criatividade, que resultaram em sucessos consagrados e músicas que hoje fazem parte do cancioneiro afetivo de gerações. Talvez esse tenha sido o período mais criativo da carreira de Rita.
Outro dado importante sobre o documentário é que ele foi gravado apenas quatro meses antes da morte de Rita. Por isso, a família já vivia o seu isolamento em função do agravamento do câncer. Os depoimentos de Roberto de Carvalho e dos filhos — especialmente quando Beto tem a tarefa de ler, em voz alta, para os irmãos mais novos a carta-testamento deixada por Rita — são de cortar o coração.
Rita era uma artista inquieta, sempre à frente de seu tempo — algo que Roberto faz questão de lembrar em uma das cenas mais tocantes. E assistir aos vídeos inéditos do acervo da família, mostrando o lado mãezona de Rita, é emocionante. Ela mesma gostava de brincar, dizendo ser “a mulher gostosa do Roberto”. O documentário não omite suas falhas: o vício em cigarro, a fase alcoólatra e a separação temporária do marido, ocasionada por esses excessos.
Rita nunca escondeu que muitas de suas melhores músicas foram compostas durante momentos em que estava sob efeito de drogas — uma confissão feita com a serenidade de quem já havia alcançado a maturidade e a aceitação na velhice.
Outro ponto de destaque é a contribuição sensível e profunda do jornalista Guilherme Samora, responsável pelo livro autobiográfico de Rita. Como fã, Samora enaltece cada criação musical, mas também revela histórias de bastidores que ajudam a compreender as dores e delícias da trajetória da artista.
O material de apoio também é riquíssimo. Entrevistas icônicas com Jô Soares e Hebe Camargo nos revelam uma Rita de humanidade sublime — apaixonada pela música, mas, acima de tudo, pela família que construiu. O depoimento recorrente da irmã Virgínia também é tocante: ela fala da personalidade intensa de Rita e das dificuldades que enfrentava diante das pressões da carreira e do mercado fonográfico.
O documentário conta ainda com falas emocionadas do ex-jogador e comentarista Walter Casagrande — amigo próximo da família — e do cantor Ney Matogrosso, outro ícone transgressor da música brasileira.
É corajosa, inclusive, a decisão do diretor em incluir uma das fases mais sombrias da vida da cantora: a crise com a cocaína, que culminou em um episódio de overdose. Ainda mais impactante é o relato da prisão arbitrária de Rita, após ela prestar depoimento sobre a morte de um fã, assassinado por policiais durante um show, em plena Ditadura Militar. Ela foi detida e mantida por um tempo em um presídio feminino, onde ficou isolada — mais uma das muitas feridas que enfrentou com coragem e dignidade.
Quando saiu da prisão, Rita e Roberto estavam praticamente falidos, afundados em dívidas com advogados e com todos os custos do processo para libertá-la. aram a viver em um minúsculo apartamento. Foi então que a solidariedade de Gilberto Gil — no auge de sua carreira — se fez presente de forma decisiva: ele promoveu uma série de shows em parceria com Rita, que marcaram sua retomada e a consagraram novamente. Um detalhe mostrado com emoção no documentário.
Esses momentos de dor e superação se entrelaçam a outros de celebração. Ao assistirmos aos vídeos de arquivo, fica evidente o quanto Rita Lee foi — e é — absolutamente necessária para a música brasileira. Seja como roqueira, carnavalesca, artista pop ou ícone da liberdade criativa, ela é alguém que merece cada monumento, cada homenagem.
O documentário se encerra como começa: com a voz de Rita ao fundo, agora refletindo sobre a morte. Enquanto suas palavras ecoam, vemos imagens do seu velório no Planetário do Ibirapuera, em São Paulo — uma despedida pública e simbólica da mulher que, em vida, já era eterna.
E, no fecho mais comovente, vemos Roberto de Carvalho caminhando sozinho. Uma imagem simples, mas poderosa. Um corte seco que traduz o imenso vazio deixado por Rita — para ele, mas também para o Brasil inteiro.
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